Manágua, Nicarágua, 30 de março de 2015 (Terramérica).- A comunidade científica da Nicarágua se debate entre boas e más notícias em torno da construção de um novo canal interoceânico: a descoberta de novas espécies ou vestígios arqueológicos e o melhor conhecimento dos ecossistemas, contra a grande ameaça ao ambiente do país. Tanto o já conhecido quanto as novas descobertas estão em perigo pela gigantesca obra que partirá em dois o território nicaraguense.
Informes preliminares da empresa britânica Environmental Resources Management (ERM) revelaram a existência de novas espécies no traçado do canal, até agora desconhecidas. A investigação foi pedida pela concessionária da via, a firma chinesa Hong Kong Nicaragua Canal Development (HKND-Group).
Seu estudo Grande Canal da Nicarágua, apresentado em Manágua no dia 20 de novembro por Alberto Vega, seu representante no país, indicou, entre outras descobertas, duas novas espécies de anfíbios na bacia do rio Punta Gorda, na costa sul do Mar do Caribe nicaraguense. As características de duas rãs estão sob investigação por se carecer de amparo científico, explicou.
Vega também informou que houve outras descobertas, como a existência de 213 sítios arqueológicos até agora desconhecidos, e foi atualizado o estado ambiental do traçado escolhido para o canal. O objetivo do estudo foi documentar as principais comunidades biológicas ao longo do traçado e áreas adjacentes, assinalar as espécies e os habitats que exibem medidas específicas de conservação, “para identificar as oportunidades para prevenir, mitigar e/ou compensar os impactos que o projeto possa ter”.
As obras do canal foram iniciadas em dezembro de 2014 e seu objetivo é unir o Oceano Pacífico e o Mar do Caribe, com uma via bidirecional de 278 quilômetros de comprimento, até 520 metros de largura e profundidade de até 30 metros. Atravessará 105 quilômetros do lago Cocibolca e estará pronta no final de 2019, a um custo superior a US$ 50 bilhões.
O estudo de impacto ambiental será concluído no final de abril, explicou ao Terramérica o porta-voz da presidencial Comissão Nicaraguense do Grande Canal Interoceânico, Telémaco Talavera. “Os estudos são feitos com a mais alta tecnologia e a responsabilidade da ERM, uma empresa internacional líder nestes temas, e uma equipe de especialistas de todas as partes do mundo contratados para fornecer um informe exaustivo sobre o impacto ambiental e as medidas de mitigação”, destacou.
Víctor Campos, subdiretor do não governamental Centro Humboldt, disse ao Terramérica que os documentos preliminares da HKND revelam que o canal causará graves danos ao ambiente do país e ameaça de maneira particular o lago Cocibolca. Com 8.624 quilômetros quadrados, esse lago é a segunda maior fonte de água doce da América Latina, atrás do venezuelano lago de Maracaibo.
Campos recordou que até mesmo a HKND reconhece que o traçado escolhido para o canal afetará reservas naturais sob proteção internacional, onde subsistem 40 espécies em perigo de extinção, entre aves, mamíferos e répteis.
Essa rota afetaria parte da Reserva Natural de Cerro Silva, e a reserva biológica Indio Maíz, ambas parte do Corredor Biológico Mesoamericano (CBM), onde habitam araras vermelhas e verdes, águias reais, antas, tigres-jaguar, macacos-aranha, micos, ursos formigueiro e lagartos negros, entre outras espécies. Junto às reservas de Bosawas e Wawashan, as de Indio Maíz e Cerro Silva abrigam 13% da biodiversidade mundial e aproximadamente 90% da flora e fauna do país.
A Nicarágua, com 6,1 milhões de habitantes, é um país tropical localizado no meio do istmo centro-americano, com costas no Pacífico e no Caribe, e 130 mil quilômetros quadrados de superfície de terras baixas, planícies e lagos interpostos, onde em várias ocasiões se tentou usar o Cocibolca para abrir uma rota interoceânica.
O Grupo Cocibolca, uma plataforma de mais de dez organizações ambientais da Nicarágua, detecta danos potenciais por escavações em terras indígenas, situadas no CBM, na costa caribenha do sudeste nicaraguense. Os impactos incluiriam Booby Cay, um abrigo natural de aves reconhecido pela Birdlife International, que é habitat para aves marinhas, tartarugas, peixes e corais.
Estudos desse grupo indicam que a dragagem com maquinário pesado, a construção de portos, a remoção de milhares de toneladas de sedimentos do fundo do lago e uso de explosivos para vencer solos rochosos afetariam o habitat das tartarugas marinhas que fazem ninho nas costas do Pacífico do sudoeste do país.
O traçado escolhido para o canal, o de número quatro de seis analisados, terá sua desembocadura no Pacífico em Brito, 130 quilômetros a oeste de Manágua. No local, haverá um porto de águas profundas, onde agora existe uma praia de desova de tartarugas.
Talavera rechaçou as “teorias apocalípticas” sobre o possível dano ambiental pela obra, mas reconheceu que haverá um impacto “que será focado e nos servirá para reverter os danos possíveis e os já confirmados por desmatamento e contaminação na rota do canal”.
A rota corta reservas naturais, mangues incluídos na lista de proteção da Convenção de Ramsar, reservas da biosfera reconhecidas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e bacias hidrográficas. Segundo Talavera, a HKND também consultou, além das autoridades ambientais nacionais, órgãos como a própria Convenção Ramsar, Unesco, União Internacional para a Conservação da Natureza ou Birdlife “sobre a viabilidade de mitigar e compensar os impactos possíveis”.
A obra foi rechaçada por grupos ambientalistas e comunidades afetadas, inclusive perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em uma audiência nesta instância, no dia 16 deste mês, a ativista Mónica López, do Grupo Cocibolca, denunciou que a Nicarágua concedeu à HKND o domínio do lago e suas periferias, nas quais convergem mais de 16 bacias hidrográficas e quase 15 áreas protegidas, e onde se concentram 25% das florestas úmidas do país.
López explicou ao Terramérica que o canal também causaria “um deslocamento forçado de mais de cem mil pessoas”, e criticou a “entrega aos empresários chineses do controle absoluto de recursos naturais alheios à rota, mas que a critério da HKND sirvam para o projeto, sem importar as considerações dos direitos dos nicaraguenses.
O Acordo Marco de Concessão e Implantação e a Lei do Grande Canal Interoceânico, aprovados em 2013, estabelecem a obrigação do Estado em garantir ao concessionário o “acesso ao direito de navegação em rios, lagos, oceanos e outros corpos dentro da Nicarágua e em suas águas, e o direito de estender, expandir, dragar, desviar ou reduzir tais corpos de água”. Além disso, o Estado também renuncia a processar os investidores em tribunais nacionais e internacionais por qualquer dano causado ao ambiente durante o estudo, construção e operação do projeto.
Na audiência da CIDH, em Washington, os representantes do governo, incluído Talavera, rechaçaram as denúncias dos ambientalistas, que atribuíram a “diretrizes políticas”, e argumentaram que o projeto “é amigável com o ambiente”. Também insistiram em seu grande argumento para a enorme obra, que esta permitirá um grande crescimento econômico, que dará recursos para que a Nicarágua deixe de ser o segundo país com mais pobreza da América, depois do Haiti, com 42% de sua população nessa condição. Envolverde/Terramérica
* O autor é correspondente da IPS.
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Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.
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